As eleições presidenciais de 23 de Janeiro vão permitir a cada cidadão eleitor fazer uma escolha. Não será uma escolha que possa inverter, por si mesma, a orientação das políticas austeritárias que, neste início de 2011, são já causadoras de mais regressão social e de mais recessão económica. Essas competências cabem ao governo e não ao presidente da República. Mas os eleitores podem optar por dar um sinal político forte de que não estão do lado da crise − nem da sua génese, nem das respostas que impedem que se lhe veja o fim. Se o quiserem fazer, serão úteis todos os votos que não recaiam no candidato Aníbal Cavaco Silva.
A ele se deve, no período entre 1985 e 1995, quando foi primeiro-ministro, inclusive com duas maiorias absolutas, a arquitectura político-financeira da viragem neoliberal que ocorreu em Portugal e que, não tendo sido posteriormente invertida nos seus aspectos essenciais − apesar das medidas de cariz social que chegaram a corrigir as mais gritantes injustiças −, nos trouxe em linha recta até à dramática situação que hoje atravessamos. Dessa viragem fizeram parte: a destruição de capacidades produtivas na agricultura ou nas pescas, já no quadro das imposições das instâncias europeias; o processo de financeirização da economia, visível no estímulo ao crédito à habitação; ou o ataque aos serviços públicos, e desde logo à saúde e à educação, que corroeu as condições do financiamento destes serviços, pôs em causa o seu carácter universal e gratuito e abriu caminho à sua exploração por lógicas e interesses privados − à força de bastonadas, quando o executivo temeu a contestação nas fábricas ou nas ruas, como aconteceu na década de 1990 com os movimentos estudantis contra o aumento de propinas.
A Cavaco Silva se deve, mais recentemente, a complacência com processos que levantam legítimas dúvidas à justiça (caso do Banco Português de Negócios, BCP) ou ao normal funcionamento do poder político (caso da invenção das escutas do governo a Belém). Mas a ele se deve também uma assumida, e aliás legítima, utilização das competências que lhe são conferidas pelo cargo de presidente da República para favorecer a resposta que o governo deu à crise causada pela especulação com a dívida soberana, resposta essa plasmada nos programas de austeridade e crescimento (PEC) e no orçamento de Estado. O resultado foram políticas austeritárias que recaíram sobre os trabalhadores, os desempregados e os pensionistas, deixando incólumes os detentores dos mais elevados rendimentos e os imorais lucros do capital financeiro.
Cavaco Silva é, assim, um protagonista activo, e talvez durante mais tempo do que qualquer outro político da actualidade, do processo do neoliberalismo à portuguesa, não um processo em que do constante ataque ao Estado resultem simples e generalizadas privatizações, mas antes uma permanente disputa pela reconfiguração do Estado de modo a que este seja, com os seus recursos, cada vez mais colocado ao serviço da acumulação do capital financeiro, da corrosão do Estado social e dos princípios de universalidade, de redistribuição e de igualdade que estão na base da construção de sociedades de bem-estar. Um processo que está na origem da fragilização programada de economias como a portuguesa, tornando-as dependentes do sistema financeiro (onde se concentram os lucros) e garantindo que esse sistema nunca seja prejudicado porque, em momentos de crise, será invocada a dependência dos bancos para não os deixar falir (usando o dinheiro dos contribuintes). Cavaco Silva é o rosto de todas as fases deste processo nas últimas décadas, desde a aplicação das políticas económico-financeiras até à sua consolidação, tendente a transformar cidadãos em clientes, mas dos que nunca têm razão e raramente podem deixar de ter medo.
Como compreender então as sondagens que apontam para a reeleição do actual presidente da Republica, sobretudo quando é notório que as preocupações da grande maioria dos portugueses estão actualmente concentradas nas dificuldades que a austeridade impõe ao seu quotidiano? É certo que a actuação do governo face à crise, embarcando no «clube europeu da austeridade» e repetindo que não havia alternativa senão ceder às «pressões dos mercados», preparou o terreno da impotência e da desesperança. Deu espaço de manobra ao candidato Cavaco Silva para vir agora desvalorizar, numa arrogância insultuosa, quaisquer alternativas políticas como falta de «bom senso», «propagação de ilusões», «larachas» e «tretas». Ou para classificar qualquer discordância política, perfeitamente legítima, como «um insulto aos mercados».
No entanto, são mais complexos os mecanismos que estão por detrás da facilidade com que Cavaco Silva se refugia no reino a-histórico da realidade como um dado imutável (e não como uma construção) e no reino a-político das escolhas meramente técnicas (e não resultantes de visões do mundo, relações de forças e interesses em conflito). Esta fuga do candidato, profundamente estratégica e política, está ao serviço da construção paternalista de uma imagem de alguém que estaria acima da política. Alguém em quem os «cidadãos» se limitariam a depositar a sua confiança, na certeza de que ele saberia identificar os consensos que a todos interessariam. Aquilo a que o candidato Cavaco Silva chama «aventura», quando se refere às escolhas que os portugueses podem sentir-se no direito de fazer, é no fim de contas um atestado de menoridade aos cidadãos e, em consequência, à própria democracia.
Neste sentido, Cavaco Silva é apenas, à nossa escala, o expoente do político que encarna algumas das características fundamentais de uma «fabricação do consenso» que a generalidade dos meios de comunicação social pratica no seu dia-a-dia. É a representação unipessoal de um espaço público e mediático que há muito vem sendo construído, sobretudo nesse meio mais influente que é a televisão, de modo a excluir o pluralismo do debate político (não apenas ao nível das propostas, mas das ideias). Um espaço artificialmente reduzido e pacificado («suavizado»…) no qual vigora a exploração do imediatismo, das emoções, e o desprezo pela espessura do contexto. Há muitos anos que neste espaço são feitas escolhas. Prefere-se, por exemplo, tratar temas como a pobreza pelo prisma da caridade, desfocando a imagem da «pobreza envergonhada», em vez de se dirigir os focos para as políticas (e seus responsáveis) que destroem serviços públicos, direitos laborais e sociais. Prefere-se, em simetria, deixar de fora da investigação jornalística os mais poderosos da sociedade, que muitas vezes são também, aliás, os accionistas dos grupos que detém a propriedade dos mesmos órgãos de comunicação social.
Na sociedade da «fabricação do consenso» finge-se a neutralidade política e escondem-se os interesses, legítimos ou não, que se escondem por detrás das atitudes dos mais fortes (as dos mais fracos, pelo contrário, são sempre alvo de suspeição ou denúncia). Se assim não for feito, corre-se o risco de os cidadãos se entusiasmarem com a aventura da democracia: que se ponham a pensar e se informem; que não aceitem formar opinião sem ouvir pontos de vista realmente contraditórios; que sintam o prazer do debate e a responsabilidade de serem parte de uma decisão; que não se sintam impotentes por tudo ser decidido longe deles e independentemente da sua vontade. Neste tempo de deriva suicidária da União Europeia, em que certa política se diz refém dos mesmos mercados cujo poder ela construiu, as próximas eleições presidenciais podem dar um sinal de que muitos cidadãos não estão do lado da crise: nem da crise que lhes impõe a austeridade e as desigualdades, nem da que os menoriza como sujeitos políticos no quadro da democracia. Derrotar Cavaco Silva será derrotar o rosto desta dupla crise, económica e política. Mas, aconteça isso ou não, a desconstrução dos mecanismos de «fabricação do consenso» é uma prioridade tão urgente antes como depois destas presidenciais da crise.