"Os árabes também amam a liberdade", um texto de Robert Misk, publicado no jornal austríaco
Der Standard (tradução retirada
daqui):
Como muitos, tenho passado várias horas diante da televisão, por estes dias. Ligado na Al Jazeera, onde era possível, até há pouco, seguir os acontecimentos em direto, vejo a história escrever-se debaixo dos meus olhos. Após a revolução democrática na Tunísia, assiste-se, com a sublevação dos egípcios, ao segundo ato desta surpreendente "primavera árabe”, "o 1989 árabe".
Estes povos tinham-nos sido apresentados como cidadãos frustrados e apáticos ou apenas fáceis de manipular pelos autocratas e os islamitas. E agora é isto: descobrimos que os jovens destas cidades não são afinal tão diferentes dos estudantes ocidentais. Aspiram às mesmas coisas. E graças à Internet, vivem realmente no mesmo comprimento de onda.
Talvez a Net e as redes sociais tenham desempenhado um papel muito mais determinante sobre a consciência coletiva do que pensávamos. Mesmo os pretensos peritos estão perplexos: passaram-se manifestamente demasiadas coisas nos últimos dois anos. O saber dos estudiosos baseia-se geralmente num período de tempo longo e em conhecimentos históricos completamente ultrapassados pelos mais recentes instrumentos da sociedade moderna, que não acompanharam.
O que mais me surpreende, aquilo que não suporto visceralmente e que me deixa bastante enervado, é essa voz que se ouve de vez em quando dizer: Meu Deus, mas que instabilidade tão perigosa! Jamais poderá dar certo, com os árabes! Vão acabar numa ditadura de mulás! Os autocratas laicos eram, apesar de tudo, bastante práticos!
Moralmente, é como se tivéssemos dito, em 1989, a Vaclav Havel, Jens Reich [defensor dos direitos cívicos na hesitante RDA] e a todos os cidadãos que estavam fartos do seu regime podre, que valia mais continuar a obedecer a Honecker, a Husak e aos outros tristes tiranos cinzentões, porque não se sabia o que podia acontecer e isso podia conduzir a uma Alemanha reunificada e beligerante.
Tal atitude não é apenas sinal de degradação moral, mas também de total desinteresse pela realidade. Quem se interesse, mesmo de longe, por este movimento popular árabe, compreende rapidamente que os "islamitas" desempenham um papel muito menos importante do que se podia supor.
Estes povos reclamam democracia e liberdade, não mulás. Alguns chegam mesmo a dizer que a influência dos islamitas está em declínio, como sucede com a Fraternidade Muçulmana no Egito.
A história está em marcha e trata-se de uma ocasião inédita. Os homens mudam, quando provaram alguma vez a liberdade. É muito simples: ninguém sabe o que se vai passar. Assistimos hoje à deposição de tiranos por uma classe média urbana. É possível que eleições livres sejam mais tarde uma fonte de desilusão. Afinal, quem sabe como reagirão os camponeses do delta do Nilo? Mas como já disse, ninguém sabe. É uma oportunidade histórica.
Claro que podemos errar. Mas a simples possibilidade de malogro é razão suficiente para nos agarrarmos à estabilidade, que é precisamente o argumento pelo qual os ditadores se mantêm no poder? Seguramente que não.
O que nos falta, a nós os desmancha-prazeres, os céticos, é imaginação política e sentido do possível. E isso não passa apenas pela nossa falta de imaginação, mas por motivos vilmente racistas: a democracia e os árabes é uma combinação que nunca pode dar certo – eles preferem os tiranos. Que raciocínio mais retorcido!
Sempre que uma sociedade, que cidadãos livres decidem tomar o seu destino nas mãos, dão necessariamente um passo no desconhecido. E o desconhecido contém riscos. Sempre foi assim, sem risco não há progresso e a democracia nunca teria visto o dia.
A democracia constituir um risco é uma objeção tão velha como a aspiração à liberdade. É sempre formulada por quem tem estabilidade. Se os nossos antepassados lhes tivessem dado ouvidos, viveríamos ainda como servos, sob a alçada do clero e o chicote dos príncipes.
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