Na sequência da reprovação pelas oposições parlamentares do quarto programa de estabilidade e crescimento (PEC IV), o governo demitiu-se e estão agora marcadas eleições legislativas para o dia 5 de Junho. Com a dissolução da Assembleia, depressa os meios de comunicação social foram inundados por considerações sobre a responsabilidade, ou falta dela, de se juntar uma crise política às outras crises que já afectam o país. Mas será possível enveredar pelo austeritarismo, que está hoje no centro das recomposições que a crise impôs nas clivagens políticas, e escapar a alguma das dimensões da crise que esse programa aprofunda, quando ainda por cima as diversas dimensões da crise actuam umas sobre as outras?
No fogo cruzado das acusações sobre a dissolução do Parlamento, marcadas por uma fulanização que prenuncia já a ligeireza política do debate que aí vem, tiveram de passar vários dias até que os media recentrassem a informação em matéria relevante para compreender o que se passava. Quando Pedro Passos Coelho publicou um artigo no The Wall Street Journal, destinado a tranquilizar os «mercados internacionais» quanto ao sentido da votação do seu partido, lá se disse aos portugueses que o Partido Social Democrata (PSD) se recusou a viabilizar o mais recente PEC por entender que as propostas de austeridade do governo «não iam suficientemente longe».
O «arco austeritário», de que fazem hoje parte o Partido Socialista (PS) e as formações à sua direita, mantinha-se portanto intacto. De facto, para se observar as fendas que abrem por toda a parte, o sítio para onde se deve olhar é para a vida concreta das pessoas que são atingidas pelas políticas de austeridade.
É aí que o desemprego e a precariedade, os baixos salários e a degradação dos serviços públicos e do Estado social, já em curso ou em projecto, revelam o verdadeiro rosto da tão falada «oportunidade» que a crise representa: para o neoliberalismo, a resposta austeritária é um salto de gigante no sentido da regressão social e da exploração laboral.
Este programa, que constrói sociedades cada vez mais marcadas por desigualdades socioeconómicas, como acontece em Portugal, é indissociável de um processo de financeirização das economias no âmbito do qual os Estados desistiram do controlo político dos mercados e aceitaram ser seus dependentes. É também indissociável, no caso dos países europeus, e sobretudo das economias periféricas, da aceitação de uma integração desastrosa na União Europeia que hoje constrange enormemente quaisquer possibilidades de recuperação.
Mas este programa seria também incompreensível sem a capacidade que os meios de comunicação social têm hoje de delimitar o campo do possível, afunilando o pluralismo de perspectivas e generalizando, no caso vertente, a ideia de que não há resposta viável à crise que não seja a austeridade. Não o fazem discutindo as vantagens e as desvantagens dessa resposta, convocando para o debate os seus defensores e os seus opositores. Fazem-no pressupondo que o austeritarismo é um campo consensual (mesmo que desagradável...) e, mais ainda, que é o único quadro possível e realista para a governação do país.
É isso que explica, por exemplo, que as referências na comunicação social ao que podia ser chamado um «arco da austeridade» surjam sempre na forma de «arco da governação». Mais do que exprimir a vontade de quem se opõe à austeridade de participar ou não na governação, este discurso sinaliza que esse arco não admite os anti-austeritários. É aliás curioso o modo como, recentemente, até se tem generalizado mais a expressão «arco da governabilidade». Já não se trata apenas de identificar os que terão direito a aceder à governação, mas de definir quem é que, uma vez lá chegado (e, em rigor, nunca se sabe que surpresas as eleições reservam), poderá ter condições de assegurar a «governabilidade», isto é, garantir alguma estabilidade nacional e internacional na condução das políticas.
Não deixa de ser paradoxal para a democracia que seja justamente quando a crise chega à política e quando a instabilidade, estrutural ao funcionamento do neoliberalismo, ameaça traduzir-se também em processos eleitorais mais frequentes, que os cidadãos estejam a ser chamados para eleger representantes que, a menos que contestem os caminhos da integração nacional na União Europeia, e a relação desta com instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI), terão uma fraquíssima autonomia de decisão política.
Por outro lado, cada vez que o espaço mediático é ocupado, sem contraditório, por quem recorre a todos os dispositivos retóricos para encobrir os (evitáveis) efeitos corrosivos da austeridade e para insistir nas vantagens de ter no poder o «arco da governabilidade», é caso para pensar nas consequências que poderá ter para a estabilidade de todo este edifício comunicacional um escrutínio cidadão continuado das respectivas práticas jornalísticas e representações da sociedade.
É caso também para pensar na importância que os movimentos populares e toda a luta no terreno social poderão ter, neste contexto político-económico, para impedir que em breve sejamos todos confrontados com uma outra dimensão da crise, tão anunciada quanto a social e a política, que é a da corrosão dos laços de confiança e de solidariedade que tende a desintegrar as comunidades onde se permite o aprofundamento imoral das desigualdades, num fosso que de um lado acumula arrogância e do outro sofrimento. Que neste mês de Abril, 37 anos depois de a democracia ter saído à rua, os portugueses saibam recuperar na contestação ao «arco da austeridade» o que essa contestação representa de mais nobre: a defesa do «espírito da igualdade».