sexta-feira, 22 de abril de 2011

"O inevitável é inviável" - Manifesto dos 74 nascidos depois de 74




O inevitável é inviável

Somos cidadãos e cidadãs nascidos depois do 25 de Abril de 1974. Crescemos com a consciência de que as conquistas democráticas e os mais básicos direitos de cidadania são filhos directos desse momento histórico. Soubemos resistir ao derrotismo cínico, mesmo quando os factos pareciam querer lutar contra nós: quando o então primeiro-ministro Cavaco Silva recusava uma pensão ao capitão de Abril, Salgueiro Maia, e a concedia a torturadores da PIDE/DGS; quando um governo decidia comemorar Abril como uma «evolução», colocando o «R» no caixote de lixo da História; quando víamos figuras políticas e militares tomar a revolução do 25 de Abril como um património seu. Soubemos permanecer alinhados com a sabedoria da esperança, porque sem ela a democracia não tem alma nem futuro.

O momento crítico que o país atravessa tem vindo a ser aproveitado para promover uma erosão preocupante da herança material e simbólica construída em torno do 25 de Abril. Não o afirmamos por saudosismo bacoco ou por populismo de circunstância. Se não é de agora o ataque a algumas conquistas que fizeram de nós um país mais justo, mais livre e menos desigual, a ofensiva que se prepara – com a cobertura do Fundo Monetário Internacional e a acção diligente do «grande centro» ideológico – pode significar um retrocesso sério, inédito e porventura irreversível. Entendemos, por isso, que é altura de erguermos a nossa voz. Amanhã pode ser tarde.

O primeiro eixo dessa ofensiva ocorre no campo do trabalho. A regressão dos direitos laborais tem caminhado a par com uma crescente precarização que invade todos os planos da vida: o emprego e o rendimento são incertos, tal como incerto se torna o local onde se reside, a possibilidade de constituir família, o futuro profissional. Como o sabem todos aqueles e aquelas que experienciam esta situação, a precariedade não rima com liberdade. Esta só existe se estiverem garantidas perspectivas mínimas de segurança laboral, um rendimento adequado, habitação condigna e a possibilidade de se acederem a dispositivos culturais e educativos. O desemprego, os falsos recibos verdes, o uso continuado e abusivo de contratos a prazo e as empresas de trabalho temporário são hoje as faces deste tempo em que o trabalho sem direitos se tornou a norma. Recentes declarações de agentes políticos e económicos já mostraram que a redução dos direitos e a retracção salarial é a rota pretendida. Em sentido inverso, estamos dispostos a lutar por um novo pacto social que trave este regresso a vínculos laborais típicos do século XIX.

O segundo eixo dessa ofensiva centra-se no enfraquecimento e desmantelamento do Estado Social. A saúde e a educação são as duas grandes fatias do bolo público que o apetite privado busca capturar. Infelizmente, algum caminho já foi trilhado, ainda que na penumbra. Sabemos que não há igualdade de oportunidades sem uma rede pública estruturada e acessível de saúde e educação. Estamos convencidos de que não há democracia sem igualdade de oportunidades. Preocupa-nos, por isso, o desinvestimento no SNS, a inexistência de uma rede de creches acessível, os problemas que enfrenta a escola pública e as desistências de frequência do ensino superior por motivos económicos. Num país com fortes bolsas de pobreza e com endémicas desigualdades, corroer direitos sociais constitucionalmente consagrados é perverter a nossa coluna vertebral democrática, e o caldo perfeito para o populismo xenófobo. Com isso, não podemos pactuar. No nosso ponto de vista, esta é a linha de fronteira que separa uma sociedade preocupada com o equilíbrio e a justiça e uma sociedade baseada numa diferença substantiva entre as elites e a restante população.

Por fim, o terceiro e mais inquietante eixo desta ofensiva anti-Abril assenta na imposição de uma ideia de inevitabilidade que transforma a política mais numa ratificação de escolhas já feitas do que numa disputa real em torno de projectos diferenciados. Este discurso ganhou terreno nos últimos tempos, acentuou-se bastante nas últimas semanas e tenderá a piorar com a transformação do país num protectorado do FMI. Um novo vocabulário instala-se, transformando em «credores» aqueles que lucram com a dívida, em «resgate financeiro» a imposição ainda mais acentuada de políticas de austeridade e em «consenso alargado» a vontade de ditar a priori as soluções governativas. Esta maquilhagem da língua ocupa de tal forma o terreno mediático que a própria capacidade de pensar e enunciar alternativas se encontra ofuscada.

Por isso dizemos: queremos contribuir para melhorar o país, mas recusamos ser parte de uma engrenagem de destruição de direitos e de erosão da esperança. Se nos roubarem Abril, dar-vos-emos Maio!

Alexandre de Sousa Carvalho – Relações Internacionais, investigador; Alexandre Isaac – antropólogo, dirigente associativo; Alfredo Campos – sociólogo, bolseiro de investigação; Ana Fernandes Ngom – animadora sociocultural; André Avelãs – artista; André Rosado Janeco – bolseiro de doutoramento; António Cambreiro – estudante; Artur Moniz Carreiro – desempregado; Bruno Cabral – realizador; Bruno Rocha – administrativo; Bruno Sena Martins – antropólogo; Carla Silva – médica, sindicalista; Catarina F. Rocha – estudante; Catarina Fernandes – animadora sociocultural, estagiária; Catarina Guerreiro – estudante; Catarina Lobo – estudante; Celina da Piedade – música; Chullage - sociólogo, músico; Cláudia Diogo – livreira; Cláudia Fernandes – desempregada; Cristina Andrade – psicóloga; Daniel Sousa – guitarrista, professor; Duarte Nuno - analista de sistemas; Ester Cortegano – tradutora; Fernando Ramalho – músico; Francisca Bagulho – produtora cultural; Francisco Costa – linguista; Gui Castro Felga – arquitecta; Helena Romão – música, musicóloga; Joana Albuquerque – estudante; Joana Ferreira – lojista; João Labrincha – Relações Internacionais, desempregado; Joana Manuel – actriz; João Pacheco – jornalista; João Ricardo Vasconcelos – politólogo, gestor de projectos; João Rodrigues – economista; José Luís Peixoto – escritor; José Neves – historiador, professor universitário; José Reis Santos – historiador; Lídia Fernandes – desempregada; Lúcia Marques – curadora, crítica de arte; Luís Bernardo – estudante de doutoramento; Maria Veloso – técnica administrativa; Mariana Avelãs – tradutora; Mariana Canotilho – assistente universitária; Mariana Vieira – estudante de doutoramento; Marta Lança – jornalista, editora; Marta Rebelo – jurista, assistente universitária; Miguel Cardina – historiador; Miguel Simplício David – engenheiro civil; Nuno Duarte – artista; Nuno Leal – estudante; Nuno Teles – economista; Paula Carvalho – aprendiz de costureira; Paula Gil – Relações Internacionais, estagiária; Pedro Miguel Santos – jornalista; Ricardo Araújo Pereira – humorista; Ricardo Lopes Lindim Ramos – engenheiro civil; Ricardo Noronha – historiador; Ricardo Sequeiros Coelho – bolseiro de investigação; Rita Correia – artesã; Rita Silva – animadora; Salomé Coelho – investigadora em Estudos Feministas, dirigente associativa; Sara Figueiredo Costa – jornalista; Sara Vidal – música; Sérgio Castro – engenheiro informático; Sérgio Pereira – militar; Tiago Augusto Baptista – médico, sindicalista; Tiago Brandão Rodrigues – bioquímico; Tiago Gillot – engenheiro agrónomo, encarregado de armazém; Tiago Ivo Cruz – programador cultural; Tiago Mota Saraiva – arquitecto; Tiago Ribeiro – sociólogo; Úrsula Martins – estudante

3 comentários:

  1. Um pouco mais de rigor...

    Eu podia chegar aqui, já com algum atraso é certo, e criticar Vital Moreira por causa do seu artigo no Público da passada terça-feira, onde aponta o dedo à “esquerda radical” pelo desvio face à ortodoxia das finanças públicas, ao mesmo tempo que o governo que apoia bateu todos os recordes recentes no que ao défice orçamental diz respeito. No entanto, recuso esta estratégia demagógica, típica da actual brigada do reumático senatorial que monopoliza o debate público.

    Pelo contrário, sei que estou em terreno mais seguro se dizer que Vital Moreira, talvez vítima da doença infantil dos neoliberalismos, o moralismo das finanças públicas, esquece que, crise após crise, estagnação após estagnação, bolha após bolha, crescimento fulgurante após crescimento fulgurante, a posição das finanças públicas numa economia capitalista avançada é sobretudo o reverso do andamento interno e externo da economia dita privada, dependendo também, mas em menor grau, da capacidade de ir contrariando o ineficiente e injusto “Estado fiscal de classe”, como Vital Moreira já bem lhe chamou. Neste se incluem, no nosso país, as predações dos grupos capitalistas rentistas, tal como as opacas e custosas parcerias público-privadas, em que o governo de Sócrates se especializou, ou a complacência face à taxação do sector financeiro, do património mobiliário e imobiliário e das grandes fortunas.

    Posso ainda dizer que o plano inclinado da austeridade mina o crescimento e o emprego, de que depende em grande medida a almejada “consolidação” das finanças públicas, e que Vital erra sistematicamente no sentido da causalidade: o crescimento é uma condição para finanças públicas ditas sãs e não o contrário. Posso repetir pela enésima vez duas mensagens básicas: o governo pode controlar a despesa e assim cortar nos rendimentos e na procura, mas não controla o défice; o momento para resolver o problema das finanças é a fase ascendente do ciclo económico capitalista, fase que com esta austeridade corre o risco de não chegar.

    E posso terminar com um apelo vital: ainda um pouco mais de rigor, se faz favor. É que é necessário ter muita ousadia para vir acusar a “esquerda radical” de nunca se preocupar com o estado das finanças públicas e depois apresentar um conjunto de propostas, uma justas outras injustas porque geradoras de exclusão, para aumentar a receita fiscal, mas que, no que se relaciona com a fuga e evasão fiscais, uma das poucas áreas em que Vital Moreira ainda diz qualquer coisa de esquerda, qualquer coisa civilizada, quase só são subscritas pela tal “esquerda radical”. Isto já para não falar na defesa da eliminação de muitos dos famosos benefícios fiscais que, segundo o Sócrates da última campanha eleitoral, constituíam um vil ataque da esquerda radical à classe média, ou na forma como Vital denuncia a eliminação do imposto sucessório durante o governo Barroso-Portas, omitindo deliberadamente que essa supressão foi apoiada pelo PS e rejeitada precisamente pela esquerda que vai à raiz, a mesma que sempre defendeu a reintrodução do que pode realmente ser o mais justo dos impostos, desde que bem desenhado.
    Postado por João Rodrigues

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  2. Para lá desta economia do medo

    Entrevista de Raquel Martins ao economista José Reis no Público de ontem:

    Olhando para o mercado de trabalho em 2011, quais foram, na sua opinião, as principais mudanças que ocorreram e quais os principais problemas com que Portugal se confronta?

    Foi o aparecimento de elevadas taxas de desemprego e, sobretudo, constatarmos que a economia ficou rodeada de um conjunto de restrições que a limitam, condicionando a criação de riqueza, restringindo a produção, minando a confiança e inviabilizando o crescimento. Constatámos que o sistema económico deixou de estar centrado na geração de riqueza e na distribuição de bem-estar, como aconteceu com o capitalismo europeu do pós-guerra, para ser um sistema rodeado de fins ilegítimos e de geração de enormes insustentabilidades. O mercado de trabalho deixou de ser um mecanismo de inclusão de pessoas e de distribuição de recursos produtivos para ser um processo de inutilização de recursos, sob a forma de inactividade de muitos, com a sua exclusão da economia.

    A elevada taxa de desemprego é culpa da crise internacional ou houve também culpas do Governo que agora cessa funções?

    Se há que encontrar um culpado para a elevada taxa de desemprego, a escolha é fácil. A asfixia da economia pelas finanças internacionais, a canibalização da produção pela especulação, a drenagem da riqueza criada para fins não-produtivos são os "culpados" certos. É aqui que se encontra também a causa da crise.

    Como travar o desemprego e lançar o emprego quando se avizinham medidas de carácter recessivo como as que fazem parte da agenda do FMI e da Comissão Europeia? Há alguma saída ou estaremos condenados a viver nos próximos anos com elevadas taxas de desemprego?

    A manutenção de elevadas taxas de desemprego será uma realidade longa, longuíssima, se não houver uma mudança radical da organização económica na Europa e em Portugal. Com a asfixia da austeridade não haverá emprego sólido. Haverá, porventura, alargamento do mercado negro do trabalho e da economia subterrânea.

    A revisão da legislação laboral é muitas vezes vista como a panaceia para os problemas do emprego. Partilha desta visão? É necessário rever a lei laboral e flexibilizar despedimentos?

    Não e não. Os problemas do emprego resolvem-se com crescimento, empresas dignas e eficientes, relações laborais saudáveis. Não é pela degradação do mercado de trabalho que se defende o emprego. Discuta-se, definitivamente, onde estão as causas da baixa produtividade em Portugal e analise-se a enorme deficiência organizacional das empresas e as razões por que muitos se declaram incapazes de pagar um simples salário mínimo.

    Qual será o grande desafio e a margem de manobra do próximo Governo em termos de mercado de trabalho e emprego, num contexto em que terá que conviver com medidas impostas de fora?

    O emprego e o trabalho são um aspecto central de um programa mínimo de salvaguarda da economia, da coesão social e do próprio crescimento. É bom que os partidos e o próximo Governo não se deixem ultrapassar pelo próprio FMI como já aconteceu com a Comissão Europeia, cuja posição desgraçada e lamentável é o dado mais negro da presente conjuntura de desconstrução europeia.
    Postado por João Rodrigues

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  3. Impossível é não viver



    É um belíssimo texto do escritor José Luís Peixoto (contributo para o MayDay Lisboa).

    Se te quiserem convencer que é impossível, diz-lhes que impossível é ficares calado, impossível é não teres voz. Temos direito a viver. Acreditamos nessa certeza com todas as forças do nosso corpo e, mais ainda, com todas as forças da nossa vontade. Viver é um verbo enorme, longo. Acreditamos em todo o seu tamanho, não prescindimos de um único passo do seu/nosso caminho.

    Sabemos bem que é inútil resmungar contra o ecrã do telejornal. O vidro não responde. Por isso, temos outros planos. Temos voz, tantas vozes; temos rosto, tantos rostos. As ruas hão-de receber-nos, serão pequenas para nós. Sabemos formar marés, correntes. Sabemos também que nunca nos foi oferecido nada. Cada conquista foi ganha milímetro a milímetro. Antes de estar à vista de toda a gente, prática e concreta, era sempre impossível, mas viver é acreditar. Temos direito à esperança. Esta vida pertence-nos.

    Além disso, é magnífico estragar a festa aos poderosos. É divertido, saudável, faz bem à pele. Quando eles pensam que já nos distribuíram um lugar, que já está tudo decidido, que nos compraram com falinhas mansas e autocolantes, mostramos-lhes que sabemos gritar. Envergonhamo-los como as crianças de cinco anos envergonham os pais na fila do supermercado. Com a diferença grande de não sermos crianças de cinco anos e com a diferença imensa de eles não serem nossos pais porque os nossos pais, há quase quatro décadas atrás, tiveram de livrar-se dos pais deles. Ou, pelo menos, tentaram.

    O único impossível é o que julgarmos que não somos capazes de construir. Temos mãos e um número sem fim de habilidades que podemos fazer com elas. Nenhum desses truques é deixá-las cair ao longo do corpo, guardá-las nos bolsos, estendê-las à caridade. Por isso, não vamos pedir, vamos exigir. Havemos de repetir as vezes que forem necessárias: temos direito a viver. Nunca duvidámos de que somos muito maiores do que o nosso currículo, o nosso tempo não é um contrato a prazo, não há recibos verdes capazes de contabilizar aquilo que valemos.

    Vida, se nos estás a ouvir, sabe que caminhamos na tua direcção. A nossa liberdade cresce ao acreditarmos e nós crescemos com ela e tu, vida, cresces também. Se te quiserem convencer, vida, de que é impossível, diz-lhe que vamos todos em teu resgate, faremos o que for preciso e diz-lhes que impossível é negarem-te, camuflarem-te com números, diz-lhes que impossível é não teres voz.

    José Luís Peixoto é um dos subscritores do Manifesto dos 74)
    .POSTED BY JOANA LOPES

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