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Ainda no rescaldo das eleições legislativas, e em modo de contributo para a tão necessária reflexão de
toda a esquerda, vale a pena ler na íntegra o texto
"Aprender sempre", da autoria de Sandra Monteiro (directora da edição portuguesa do
Le Monde Diplomatique):
Com os resultados das eleições legislativas de 5 de Junho tornou-se ainda mais difícil romper com as políticas de austeridade impostas pela União Europeia e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). É uma má notícia para Portugal, mas também para os defensores de uma Europa coesa e social. É um bilhete simples, numa viagem que ameaça ser sem regresso, para uma crise ainda mais prolongada e profunda. Com mais regressão social e mais recessão económica.
O líder do Partido Social Democrata (PSD) discursou quando se tornou claro que podia formar um governo de maioria com o Centro Democrático Social-Partido Popular (CDS-PP). Garantiu que a substituição de José Sócrates, o rosto até agora protagonista das políticas de austeridade (ironicamente, só possíveis com o aval do PSD), marcava o início de uma nova fase de estabilidade e a abertura de «uma janela de esperança e de confiança no futuro». Infelizmente, por essa janela só vai entrar uma realidade cada vez mais dramática para a grande maioria dos cidadãos.
Será a realidade ditada pelas condições (inquestionadas) da intervenção externa. Mas não só: os representantes do neoliberalismo português vão aproveitar para dar um salto em frente no seu programa, sem resolverem nada do que causou a dívida soberana e sem a pagarem − como eles bem sabem, a reestruturação é inevitável. A crise da dívida vai ser usada para destruir serviços públicos e funções sociais do Estado, para privatizar as partes lucrativas de muitas empresas (algumas totalmente), para tornar a fiscalidade mais cega e regressiva, para cortar prestações sociais, para flexibilizar as relações laborais e os despedimentos, para diminuir salários e pensões.
Tudo isto para operar uma inédita transferência de dinheiro e de poder para privilégios e interesses privados em detrimento do público. Sem qualquer embaraço ou hesitação perante o crescente fosso das desigualdades socioeconómicas que nos próximos anos vão aumentar entre os cidadãos mais ricos e os mais pobres em Portugal, e entre os Estados mais ricos e os mais pobres na União Europeia. Vai ser muito fácil compreender os verbos por trás dos adjectivos, o processo de construção política por trás de um ponto de chegada: «rico» é quem foi enriquecido; «pobre» é quem foi empobrecido.
Pedro Passos Coelho, como todos os que, em Portugal e na Europa, são instrumentos da austeridade, está menos preocupado com o fardo que a dívida vai representar, durante muitos anos, para as populações e os países mais frágeis do que o está com o fardo que Portugal pode representar para os credores desse (lucrativo) empréstimo. É seu objectivo, como afirmou no mesmo discurso, «poder dar a todos aqueles que nos observam do exterior a garantia de que Portugal não pretende ser um fardo para o futuro que onere outros países que nos emprestaram meios de que nós precisávamos hoje para fazer face às nossas responsabilidades e os nossos compromissos».
Já não haverá muitas pessoas que ignorem que este caminho não permite, ao contrário do que afirmou o líder do PSD, «honrar o compromisso» do pagamento da (usurária) dívida, nem «retirar Portugal da ajuda externa» (que tem tudo de exploração e nada de ajuda). Mas enquanto se afirma a vontade de «voltar a conquistar a confiança dos mercados em Portugal» presta-se vassalagem a quem importa, o sector financeiro, e usa-se essa dependência (laboriosamente construída) para justificar o verdadeiro fardo, o que continuará a esmagar os cidadãos.
Como compreender o comportamento destes cidadãos a 5 de Junho? Enquanto uns decidiram abster-se, a níveis inéditos em eleições legislativas (41,18%), outros votaram, muito maioritariamente, para reforçar uma representação parlamentar que apoia a austeridade − seja esse apoio por entusiasmo convicto ou por consentida impotência. Este resultado eleitoral é um novo fardo e exige profunda reflexão de todos os que criticam as medidas de austeridade. Não por erro de análise. Infelizmente, tudo indica que o acerto das análises formuladas a respeito das causas da crise e das consequências da resposta austeritária não vai ser contrariado pela realidade, nem aqui nem noutros países afectados.
No Le Monde diplomatique vamos continuar a reservar um espaço importante à crítica desta mais recente mutação do pensamento único que é o austeritarismo, destacando os mecanismos de política económica e social através dos quais ele funciona em Portugal, na União Europeia e noutros pontos do mundo. Juntamos a esta abordagem uma perspectiva histórica, devedora das análises que fazemos há décadas, em particular desde que as instituições fundamentais da globalização neoliberal (FMI, Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio) começaram a impor a países de vários continentes os seus planos de ajustamento, juros das dívidas, planos de privatização e demais leis que só olham aos lucros.
Sabemos que a contribuição que damos para enriquecer o conjunto de análises e ideais disponíveis é feita num quadro mediático muito assimétrico e desfavorável ao pluralismo. Todos os actores que, nos mais diversos campos de actuação (político, sindical, partidário, social, cultural, de voluntariado, etc.), procuram caminhos não hegemónicos conhecem dificuldades parecidas quando tentam comunicar os seus pontos de vista.
Mas, mesmo quando essa comunicação consegue furar algumas barreiras, descobre-se que para haver transformações não basta existirem análises acertadas e ideias alternativas disponíveis. Tal como não resulta de a maioria das pessoas estarem a viver mal, cada vez pior, que acreditem na possibilidade de soluções políticas alternativas. Talvez se possa até dizer que quanto maior é o medo do futuro, quanto mais ele resulta de uma percepção correcta da realidade, mais os cidadãos precisam que a esperança capaz de se sobrepor a esse medo tenha contornos nítidos e mostre que, além de ter razão, vai pôr essa razão em prática.
Nestas eleições isso não aconteceu. Entre os que ficarão na oposição, uns não mostraram ter soluções para a sustentabilidade financeira do Estado social que não implicassem cedências de universalidade, gratuitidade e qualidade na prestação dos serviços; outros não apresentaram planos robustos de convergência que contrariassem a fragilidade estratégica que tem contribuído para arredar as esquerdas da governação. Convencidos de que a austeridade era um dado do problema a que não iriam fugir, os eleitores responderam de uma forma que vai aprofundar a austeridade. A democracia continua a ser um campo de aprendizagem, mesmo que dolorosa.
Cabe agora a todos, e desde logo aos já participam em associações, sindicatos e demais movimentos populares, encontrar os espaços de convergência em torno das questões essenciais que vão continuar a desafiar a capacidade cidadã de defender o bem comum: a escola pública, o Serviço Nacional de Saúde, o sistema de Segurança Social, as leis laborais e tantas outras. Estas pontes, já se sabe, são mais fáceis de criar fora dos períodos em que há eleições (nestas só não se divide o que já lá chegou unido). Mas não se perca demasiado tempo: esta crise encurta ciclos eleitorais quando menos se espera.