Parece-me que ganhamos alguma coisa se olharmos para a nossa crise política como resultado e início de uma nova fase, directamente política, da (Des)união Europeia em construção.
De Maastricht a Lisboa, a União Europeia trancou-se numa constituição e em tratados internacionais que procuravam tornar praticamente inviável qualquer alternativa que não seja a que “os mercados globais” determinam. A intenção era exactamente essa. Se alguma coisa caracteriza o liberalismo bastardo dos nossos dias é precisamente o seu desdém pela democracia e o propósito confessado de “libertar a economia” da política. Sabemos aonde isso nos levou, mas não aprendemos, ainda.
Paradoxalmente, essa arquitectura constitucional foi desenhada com a activa participação, quando não com o entusiasmo, da social-democracia europeia. Muitos socialistas portugueses dizem hoje reconhecer e lamentar essa deriva neoliberal da social-democracia.
O nó górdio da camisa de onze varas europeia situa-se na total dependência dos estados quanto às suas necessidades de financiamento das mega-instituições financeiras chamadas mercados (bancos e fundos de investimento). A mentira mais bem sucedida dos nossos dias condensa-se numa frase: “o dinheiro não cai do céu”. É verdade que para as famílias e para cada um de nós “o dinheiro não cai do céu”, mas na realidade o dinheiro cai do céu para os bancos: ele é criado pelos bancos, em última análise pelos bancos centrais. Acontece que os tratados, contrariamente ao que sucede por exemplo nos EUA, impedem o Banco Central Europeu de financiar os estados directamente, deixando-os entregues às instituições financeiras que por sua vez são generosamente financiadas pelo BCE para adquirir títulos de dívida soberana que depois o BCE recompra (nos mercados secundários) ou aceita como garantia de novos créditos. A ideia é simples: sujeitar os estados à “disciplina dos mercados” que é o mesmo que dizer impedir os estados de disciplinar os mercados.
Quando a crise bancária e a recessão chegou à Europa o dinheiro caiu do céu a rodos sobre os bancos, os “estabilizadores automáticos” dispararam, pacotes de estímulo orçamental foram adoptados, e as despesas e as dívidas públicas aumentaram, como não podia deixar de ser. Tudo isto foi decidido em cimeiras do G20 e da União Europeia e estaríamos bem pior se não tivesse sido, não exactamente assim, mas parecido.
Mas, ao primeiro sinal vindo da Grécia de que “os mercados” estavam relutantes em financiar os estados, e à falta de uma alternativa que os permitisse substituir, a “disciplina dos mercados” impôs-se ao bom senso e a Europa iniciou a viragem austeritária. A UE tirou o tapete aos estados endividados e os mais pequenos e vulneráveis (nem sempre os mais endividados) ficaram com a batata quente nas mãos. Agora, contrariada, a EU reinterpretava os tratados para permitir que o BCE comprasse dívida pública aos bancos e para providenciar a “ajuda” aos estados falidos. Mas, sob o signo da austeridade, a “ajuda” prestada à Grécia e à Irlanda veio a revelar-se letal.
É claro que se a camisa de onze varas não fosse o que é teria havido outro caminho: políticas orçamentais e monetárias amigas da recuperação, investimento público, até que os níveis de desemprego dessem sinais de abrandamento e a redução dos défices e da dívida pudessem ter lugar sem nova recessão. Agora todos sabemos, incluindo os nossos austeritários sem vergonha, que não há solução para a dívida que não passe pelo crescimento e que não há crescimento com esta dose austeritária.
O austeritarismo é na realidade todo um programa de destruição dos serviços públicos, dos direitos laborais, do Estado Social e a crise a oportunidade para o executar. É um programa incompatível com os valores mais básicos da esquerda, de que nenhuma força política de esquerda, ou vagamente de esquerda, pode ser executante sem que com isso se suicide. É também um programa que violenta algumas das aspirações mais sentidas da maioria dos europeus que nenhuma força política de direita pode assumir sem que com isso perca a menor das hipóteses de vir a governar em democracia.
Em resumo, o austeritarismo – o programa político que “os mercados globais” determinam – condena à morte qualquer “esquerda” que a ele se queira submeter e obriga a direita a ocultar as suas intenções sob uma retórica justicialista ou nacionalista. Forçados a “escolher” entre uma “esquerda” que se sujeita “aos mercados” (e não os sujeita) e uma direita hipócrita, só podemos desesperar da política. A “esquerda” que se sujeita afunda-se para ser substituída pela direita que mente enquanto a mentira não se torna patente para voltar a “esquerda” que se sujeita com promessas que não pode, ou nem mesmo quer, cumprir. O tempo político comprime-se. Os ciclos políticos tornam-se cada vez mais curtos. Isto é aquilo a que deveremos talvez chamar ingovernabilidade.
Os chamados países periféricos da zona euro (e com eles toda a União Europeia) estão a ser empurrados para um trilema: ou se deixam transformar em protectorados com “governos” de turno efémeros, de direita ou de “esquerda”, a executar o programa austeritário até que a recessão, a divergência e a bancarrota os separe do continente; ou partem eles próprios à aventura; ou não se sujeitam e, coordenadamente entre eles e com outras esquerdas europeias que não se sujeitam, conseguem inflectir o rumo suicidário que foi imposto à Europa.
Por mim prefiro a reconstrução europeia e uma esquerda que não se sujeite em Portugal e que dê prioridade à construção de uma esquerda europeia que não se sujeita, representando-a em Portugal. Uma esquerda que tenha a sabedoria necessária para evitar as recriminações contra os que têm tido a coragem e a energia de dar o melhor de si e seja capaz de nos oferecer um lugar político abrangente e suficientemente poderoso para além da “esquerda” que se sujeita e da direita que mente.