"O Tea Party português", artigo de opinião de José Manuel Pureza, publicado ontem no Diário de Notícias:
O debate ocorrido nos Estados Unidos a propósito do limite do endividamento foi claro: cortar em despesa social para "emagrecer o monstro" Estado, posição defendida pelos que diminuíram como nunca os encargos fiscais dos ricos e deixaram o Estado sem capacidade de atender a necessidades sociais básicas, ou reforçar a justiça fiscal para reforçar a justiça social. Obama cedeu em toda a linha e ficou refém dos fundamentalismos anti-Estado do Tea Party.
Há um Tea Party português. Não, não é um bando de extremistas redentoristas que defendem o excepcionalismo português como os seus congéneres nos Estados Unidos. O que os une ao lado de lá do Atlântico é a mesma visão do Estado como monstro que engorda sem cessar e face ao qual a única tarefa nobre é emagrecê-lo até ficar esquálido. Tudo o resto é para eles socialismo. O Governo é hoje o nosso Tea Party. Zerar o Estado - para usar o gostoso brasileirismo de pôr a zeros - é o seu dogma (salvo, registe-se, na composição dos gabinetes ministeriais e nas comissões de avaliação das finanças públicas e... bom, mas isso são detalhes).
Álvaro Santos Pereira ilustrou bem a obsessão ideológica dos nossos zeristas ao anunciar o fim do passe social. O défice das empresas de transportes públicos e a injustiça do passe social foram os argumentos de serviço para justificar a adopção de um aumento sem precedentes no preço pago pelos passageiros e da substituição do passe social por uma tarifa social para indigentes ("mais carenciados", na linguagem eufemística do Governo), acompanhada pelo pagamento de todos os demais em função dos respectivos rendimentos familiares. É uma obsessão ideológica evidente: porque nem esta política vai reduzir significativa e duradouramente o défice do sector (o que imporia ganhos de modernização e de melhoria da gestão que nem sequer são equacionados), nem ela obrigará os mais ricos a pagar mais (os mais ricos pura e simplesmente não usam transportes colectivos, pelo que só pagarão mais - muito mais - os que se situam no escalão imediatamente acima do salário mínimo). Entre a penalização de quem ganha 500 ou 600 euros e um contributo acrescido de quem ganha muitos milhares, o Governo, como o Tea Party, escolhe a primeira. Tudo ideologia em estado puro.
Na saúde como nos transportes, na luz, na água ou no gás, é claro que nem sempre menos com mais dá mais: menos famílias com mais custos dá claramente menos. Menos bem público, menos qualidade de serviço público, menos direito efectivo de todos. Seguramente mais condições para posterior privatização.
Como o do Tea Party nos Estados Unidos, o horizonte dos nossos zeristas é o da transferência da função social dos impostos para os encargos das famílias. Na boa lógica de Lavoisier, os encargos que o Estado deixa de ter no financiamento dos transportes não se evaporam, são transformados em custos para as famílias. A nossa direita, piedosa e cheia de zelos para com os pobres, clama que isto, sim, é verdadeira justiça social. À velha maneira, o tratamento dos pobres passa a ser feito numa lógica de sobrevivência e sob vigilância apertada e não numa lógica de redistribuição devida pelo reconhecimento de direitos. Os estudos mais rigorosos são claros: a pobreza em Portugal é resultado dos baixos salários. Por isso, a justiça social, tão cara ao discurso dos zeristas portugueses, é o avesso do que eles defendem: a definição de uma reserva de serviços públicos de segunda para os mais pobres dos pobres, completada pela distribuição de sobras (dos restaurantes, das farmácias, etc.) para lhes garantir a sobrevivência. Mas mantendo-os pobres.
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