sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Recordar para nunca esquecer # 2 (Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto)

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Se tivesse comido logo que chegou do campo, o estômago ter-se-ia rasgado por causa do peso dos alimentos, ou então esse peso encostar-se-ia ao coração que, pelo contrário, na caverna da magreza, se tinha tornado enorme: batia tão depressa que não era possível contar as pulsações, não era possível dizer que batia, propriamente, mas tremia, como se estivesse sob o efeito do terror. Não, não podia comer sem morrer. Mas não podia ficar mais tempo sem comer sem que morresse. A dificuldade era essa.
[...]
Papas, disse o médico, à colher de café. Dávamos-lhe papas seis ou sete vezes por dia. Uma colher de café de papa sufocava-o, agarrava-se às nossas mãos, procurava o ar e voltava a cair na cama. Mas engolia. E assim, seis ou sete dias pedia para fazer. Levantávamo-lo pegando-lhe por baixo dos joelhos e dos braços. Devia pesar entre trinta e sete e trinta e oito quilos: o osso, a pele, o fígado, os intestinos, o cérebro, o pulmão, tudo incluído: trinta e oito quilos repartidos por um corpo de um metro e setenta e oito. Pousávamo-lo no bacio, púnhamos uma pequena almofada no rebordo: no sítio onde as articulações se moviam mesmo por baixo da pele, a pele estava em carne viva. [...] Quando se sentava no bacio fazia tudo de uma só vez, num glu-glu enorme, inesperado, desmesurado. Aquilo que o coração retinha, o ânus não podia reter, largava o conteúdo. Tudo, ou quase, largava o conteúdo, até os dedos que já não retinham as unhas, também as largavam. [...]
Durante dezassete dias, o aspecto daquela merda foi sempre o mesmo. Era desumana. Separava-o de nós mais do que a febre, do que a magreza, do que os dedos sem unhas, do que as marcas da pancada dos S.S. Dávamos-lhe papa amarela, dourada, papa para bebé e depois saía dele verde escuro como se fosse lodo de um pântano. Depois de taparmos o bacio ouvíamos as bolhas quando rebentavam à superfície. Podia fazer lembrar - viscosa e peganhenta - um escarro grande. Logo que saía, o quarto enchia-se de um cheiro que não era o da putrefacção, o do cadáver - se é que ainda havia no corpo dele matéria para cadáver -, era mais o de um húmus vegetal, o cheiro das folhas mortas, o da vegetação rasteira e espessa, nos bosques. Era de facto um cheiro sombrio, espesso como o reflexo dessa noite espessa da qual ele emergia e que nós não conheceríamos nunca. (Eu encostava-me às persianas, a rua debaixo dos meus olhos passava, e como eles não sabiam o que acontecia no quarto, apetecia-me dizer-lhes que naquele quarto por cima deles, um homem tinha voltado dos campos alemães, vivo.)

Marguerite Duras - "A Dor" (excerto)

(Tradução: Tereza Coelho)

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