O manifesto "Convergência nacional em torno do emprego e da coesão social", publicado no passado sábado no jornal Público e subscrito por 58 cidadãos, deu agora lugar a uma petição pública.
Num momento dramático como o que vivemos, a sociedade portuguesa precisa de debate e de convergências democráticas. Precisa também de reconhecer que a crise do liberalismo económico, de que a acção dos programas patrocinados pelo FMI tem sido uma expressão, obriga a reavaliar opiniões e prioridades e a construir soluções novas, assentes em ideias e escolhas claras e num programa explícito, sabendo que na democracia nunca há a inevitabilidade de uma escolha única, porque a democracia procura as melhores soluções da forma mais exigente.
É indiscutível que o estado das finanças públicas, que é em grande medida o resultado da profunda crise económica, exige um conhecimento e avaliação exigentes de todos os compromissos públicos. E que se torna urgente identificar a despesa pública desnecessária, supérflua e geradora de injustiças sociais, distinguindo-a da que é indispensável, colmata problemas sociais graves e qualifica o país.É também útil que se reconheça a importância do trabalho, dos salários e dos apoios sociais na sociedade portuguesa, se admita a presença de carências profundas, sob a forma de pobreza e de desigualdades crescentes, e se considere que os progressos alcançados na nossa sociedade são o resultado da presença de mecanismos de negociação colectiva e de solidariedade cujo desmantelamento pode significar uma regressão socioeconómica que debilitará o país por muito tempo.
Qualquer solução para os nossos problemas tem de partir de uma constatação realista: até agora as intervenções externas foram a expressão de uma União Europeia incapaz de perceber que a alternativa à solidariedade, traduzida em cooperação económica e integração sem condicionalidade recessiva, é o enfraquecimento das periferias sob pressão da especulação e de cúmplices agências de notação. A zona euro paga o preço de não ter mecanismos decentes para travar a especulação em torno da dívida soberana e para promover políticas de investimento produtivo que permitam superar a crise. As periferias pagam o preço da sua desunião política, única forma de colocar o centro europeu, principal responsável por este arranjo, perante as suas responsabilidades.
No momento em que se vão iniciar negociações entre o Governo e a troika FMI-BCE-CE, sabe-se que a austeridade provoca recessão económica e gera fracturas profundas, de que o desemprego elevado é a melhor expressão. As experiências grega e irlandesa exigem uma revisão das condições associadas aos mecanismos de financiamento em vigor. De facto, devido à austeridade intensa dos últimos dois anos, a economia irlandesa contraiu-se mais de 11% e a recessão grega atingiu 6,5% só entre o último trimestre de 2009 e o último de 2010. O desemprego ultrapassa já os 13% nestes dois países. A este ritmo, e apesar dos cortes orçamentais intensos, nenhum deles conseguirá reduzir a sua dívida. Isso só acontecerá com crescimento económico e com uma noção clara de que não é nos salários e no trabalho, mas antes na escassa inovação e na fraqueza organizacional de grande parte das empresas portuguesas, que residem os problemas de competitividade. Portugal não pode ser um laboratório para repetir as mesmas experiências fracassadas, e corremos o risco de uma recessão ainda mais prolongada, se tomarmos em consideração as previsões do próprio FMI.
Por tudo isto, considera-se necessário um apelo a um compromisso sob a forma de um programa de salvaguarda da coesão social em Portugal, de manutenção e reforço das capacidades produtivas do país para gerar emprego, com atenção às pessoas, evitando sacrifícios desnecessários. Os pontos essenciais de tal compromisso são os seguintes:
1. Garantir que em todas as decisões económicas e financeiras se coloca o objectivo de promoção exigente do crescimento e do emprego, reconhecendo que a sociedade portuguesa não comporta níveis de desemprego que outras sociedades registam, dada a fragilidade da estrutura de rendimentos e a insuficiência dos mecanismos de protecção social. A presença, já sugerida, da OIT nas negociações entre o Governo e a troika FMI-BCE-CE seria um sinal construtivo muito importante, colocando a questão do trabalho digno.
2. Desencadear um escrutínio rigoroso da despesa pública, auditando a dívida do país, sobretudo a externa, identificando com rigor as necessidades reais e os desperdícios da administração pública e salientando a necessidade de concentrar os recursos na esfera essencial das políticas públicas que combatem a exclusão social e a desigualdade, qualificam as pessoas e promovem a actividade produtiva, a competitividade e o crescimento da economia.
3. Afirmar que a educação, a saúde e a segurança social, bem como outros bens públicos essenciais como os correios, não podem ser objecto de privatização, fazendo da lógica lucrativa um mecanismo de regulação nestes domínios, visto que tal solução seria cara e insustentável financeiramente, levaria à exclusão de muitos e generalizaria injustiças sociais e regionais.
4. Recusar qualquer diminuição do papel do Estado no sector financeiro, sublinhando que a Caixa Geral de Depósitos deve permanecer integralmente pública e com uma missão renovada e que a regulação do sector terá mesmo de ser reforçada para evitar novos abusos.
Os signatários entendem que um compromisso deste tipo viabiliza as acções necessárias ao momento presente, capacita a sociedade para enfrentar positivamente as dificuldades e tem como objectivo tornar claro que, em circunstâncias graves, há direitos associados à dignidade do trabalho, ao respeito pelas pessoas e à garantia da coesão social que não podem ser postos em causa, sob pena de fragilizar gravemente o país e de eliminar qualquer capacidade própria de superar a situação dramática em que nos encontramos.
Self-hating pigs
ResponderEliminarpor Daniel Oliveira
O Expresso deu-nos a conhecer um estranho confronto: o FMI queria que o empréstimo a Portugal fosse por mais tempo e com juros mais baixos, de forma a atenuar os efeitos recessivos desta intervenção externa; a União, pelo contrário, quer que o pagamento da dívida seja mais rápido e com juros mais altos, sem olhar ao resultado devastador desta política.
Ou seja, são os nossos parceiros europeus que menos se preocupam com a destruição da nossa economia. Tendo como resultado certo, nestas circunstâncias, a bancarrota de Portugal, que se deverá seguir à da Grécia. O que acabará por ter resultados na própria saúde do euro. Chagámos então a este ponto: o maior inimigo da Europa é a própria Europa.
Ao que parece, os eleitores dos estados europeus não querem participar no "resgate". A coisa é de tal forma absurda que até os gregos se queixam de ter de pagar os erros dos outros. É o egoísmo que governa a Europa. E como acontece quando o pânico se instala e não há ninguém para liderar, ninguém se vai salvar. Poderia dar-se o caso da recusa em participar nesta intervenção ser um ato de solidariedade para com as vítimas da "ajuda", já que se conhecem os efeitos desta intervenção. Mas não é disso que se trata. Se fosse, não era a Europa a insistir nas piores condições possíveis.
Este suicídio europeu resulta do monstro que construimos: temos uma economia europeia, uma moeda europeia e não temos uma democracia europeia. Nenhum poder político legitimado pelo voto responde pelo conjunto dos europeus. Por isso, cada um fala apenas para os seus nacionais. O governo finlandês, por exemplo, cede aos eleitores dos "verdadeiros finlandeses", partido de extrema-direita que obteve ontem quase um quinto dos votos. O egoísmo é o mais estúpido dos instintos perante esta crise europeia. E é respondendo a esta irracionalidade que a Europa se está a desgovernar.
Ao aceitarem, também eles, a narrativa infantil que remete para as economias periféricas, e não para as fragilidades institucionais do euro e para a desregulação dos mercados, toda a responsabilidade por esta crise, foram os próprios portugueses, gregos e irlandeses a contribuirem para o discurso populista contra os "PIGS"(Portugal, Irlanda - ou Itália, ou as duas -, Grécia e Espanha). Quem se trata a si próprio como incapaz não pode esperar ser tratado com respeito.
É verdade que a Europa, por falta de lideranças e por ignorância dos seus povos sobre a natureza desta crise - ignorância para a qual muitos economistas, apostados numa cruzada ideológica, têm contribuído - está a cavar a sua sepultura. Mas não são apenas os complexos de superioridade dos povos do norte (muitos deles com situações financeiras tão graves como as nossas) os responsáveis por este suicídio. O espírito autoflagelador dos "self-hating pigs" e das suas antipatrióticas elites políticas, económicas e intelectuais também tem ajudado à festa: ao aceitarmos esta narrativa, para melhor engolirmos os absurdos e inúteis sacrifícios que nos exigem, estamos a confirmar a nossa culpa e a tornar para os que estão melhor ainda mais intolerável a solidariedade europeia. Talvez quando tivermos um pouco mais de orgulho e amor próprio estejamos em condições de lutar pela nossa própria vida e de exigir o respeito que nos é devido.
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