A verdadeira blasfémia No caso Pussy Riot, a verdadeira blasfémia é a própria acusação do Estado, formulando como crime ou ódio religioso algo que foi claramente um ato político de protesto contra a clique governante. Por Slavoj Žižek, publicado em Dangerous Minds. Artigo | 20 Agosto, 2012 - 17:39
Quanto mais brutalmente atua o poder, mais importante se tornará o símbolo das Pussy Riot. Foto de Denis Bochkarev As Pussy Riot são acusadas de blasfémia e de ódio à religião? A resposta é fácil: a verdadeira blasfémia é a própria acusação do Estado, formulando como crime ou ódio religioso algo que foi claramente um ato político de protesto contra a clique governante. Recordem a velha ironia de Brecht na Ópera dos Três Vinténs: “O que é roubar um banco, comparado com fundar um banco?” Em 2008, Wall Street deu-nos a nova versão: o que é roubar um par de milhares de dólares, pelos quais se vai parar à cadeia, comparado com a especulação financeira que priva dezenas de milhares de pessoas das suas casas e poupanças, e é recompensada pela ajuda do Estado de grandeza sublime? Agora, temos outra versão, vinda do poder do Estado da Rússia: O que é uma modesta provocação obscena das Pussy Riot numa igreja, comparada com a acusação contra as Pussy Riot, esta gigantesca e obscena provocação do aparelho de Estado que escarnece de qualquer noção de lei e ordem decentes?
Será que o ato das Pussy Riot foi cínico? Há dois tipos de cinismo: o cinismo amargo dos oprimidos que desmascara a hipocrisia dos que estão no poder, e o cinismo dos próprios opressores que violam abertamente os seus próprios proclamados princípios. O cinismo das Pussy Riot é do primeiro tipo, enquanto o cinismo dos que estão no poder – porque não chamar a sua brutalidade autoritária de Prick Riot – é do muito mais nefasto segundo tipo.
Em 1905, Leon Trotsky caracterizou a Rússia czarista como “uma perversa combinação do látego asiático com a bolsa de valores europeia.” Será que esta designação não se aplica mais e mais também à Rússia de hoje? Não anuncia a subida da nova fase do capitalismo, capitalismo com valores asiáticos (que, evidentemente, nada tem a ver com a Ásia e tudo a ver com as tendências antidemocráticas no capitalismo global de hoje). Se entendemos cinismo como o pragmatismo rude do poder que se ri secretamente dos seus próprios princípios, então as Pussy Riot são o anti-cinismo incorporado. A sua mensagem é: as ideias contam. São artistas concetuais no nobre sentido da palavra: artistas que dão corpo a uma Ideia. Foi por isso que usaram balaclavas: máscaras de desindividualização, de anonimidade libertadora. A mensagem das suas balaclavas é que não interessa qual delas foi presa – elas não são indivíduos, são uma Ideia. E é por isso que são tamanha ameaça: é fácil prender indivíduos, mas tentem prender uma Ideia!
O pânico dos que estão no poder – exibido pela sua reação ridiculamente brutal e excessiva – é assim plenamente justificada. Quanto mais brutalmente atuam, mais importante se tornará o símbolo das Pussy Riot. Para já, o resultado das medidas opressivas é que Pussy Riot se tornou um nome familiar literalmente em todo o mundo.
É um dever sagrado de todos nós evitar que as corajosas Pussy Riot não paguem na carne o preço de se terem tornado um símbolo global.
Pussy Riot - Sem medo do medo O estado de direito não existe na Rússia, quando um tribunal decreta esta sentença ou quando um outro proíbe por 100 anos as paradas LGBT.
opiniao | 21 Agosto, 2012 - 00:07 | Por João Teixeira Lopes Lead: O estado de direito não existe na Rússia, quando um tribunal decreta esta sentença ou quando um outro proíbe por 100 anos as paradas LGBT.
O poder instalado no Kremlin aproxima-se cada vez mais de um fascismo. Para além da corrupção e do nepotismo, a concentração e a centralização do poder assumem proporções próprias das ditaduras. Eu sei que a oposição não é brilhante: entre um partido comunista enfraquecido, esclerosado e descaracterizado e os liberais cleptocratas herdeiros de Ieltsin, existe ainda pouca afirmação de uma sociedade civil independente dos poderes económicos e capaz de rejeitar tanto a via selvática de um capitalismo de abutres que despedaçam os bens públicos ou de um autoritarismo de estado sem ideologia que não seja a da sua própria perpetuação.
Pouco sei sobre os antecedentes e o enquadramento cultural e ideológico do colectivo punk e feminista Pussy Riot, mas confesso a minha admiração e respeito por estas mulheres corajosas, condenadas a dois anos de cadeia por hooliganismo e “incitação à raiva religiosa” e presas num estabelecimento onde são humilhadas e mal-tratadas, trazendo ao de cima a cultura goulag de encarceramento. Convém lembrar, aliás, que mais de 47 mil mulheres russas estão presas nesta espécie de campos.
O estado de direito não existe na Rússia, quando um tribunal decreta esta sentença ou quando um outro proíbe por 100 anos as paradas LGBT. Afrontar o todo-poderoso Putin ou a sacrossanta igreja ortodoxa, aliados num caldo de nacionalismo bafiento, é considerado um crime contra a sociedade, mas a repressão às liberdades é feita pelos próprios tribunais!
Mulheres corajosas e solidárias, firmes perante a sentença e perante poderes que, na verdade, demonstram apenas os seus pés de barro, as Pussy Riot mostraram-nos que já não têm medo do medo.
A verdadeira blasfémia
ResponderEliminarNo caso Pussy Riot, a verdadeira blasfémia é a própria acusação do Estado, formulando como crime ou ódio religioso algo que foi claramente um ato político de protesto contra a clique governante. Por Slavoj Žižek, publicado em Dangerous Minds.
Artigo | 20 Agosto, 2012 - 17:39
Quanto mais brutalmente atua o poder, mais importante se tornará o símbolo das Pussy Riot. Foto de Denis Bochkarev As Pussy Riot são acusadas de blasfémia e de ódio à religião? A resposta é fácil: a verdadeira blasfémia é a própria acusação do Estado, formulando como crime ou ódio religioso algo que foi claramente um ato político de protesto contra a clique governante. Recordem a velha ironia de Brecht na Ópera dos Três Vinténs: “O que é roubar um banco, comparado com fundar um banco?” Em 2008, Wall Street deu-nos a nova versão: o que é roubar um par de milhares de dólares, pelos quais se vai parar à cadeia, comparado com a especulação financeira que priva dezenas de milhares de pessoas das suas casas e poupanças, e é recompensada pela ajuda do Estado de grandeza sublime? Agora, temos outra versão, vinda do poder do Estado da Rússia: O que é uma modesta provocação obscena das Pussy Riot numa igreja, comparada com a acusação contra as Pussy Riot, esta gigantesca e obscena provocação do aparelho de Estado que escarnece de qualquer noção de lei e ordem decentes?
Será que o ato das Pussy Riot foi cínico? Há dois tipos de cinismo: o cinismo amargo dos oprimidos que desmascara a hipocrisia dos que estão no poder, e o cinismo dos próprios opressores que violam abertamente os seus próprios proclamados princípios. O cinismo das Pussy Riot é do primeiro tipo, enquanto o cinismo dos que estão no poder – porque não chamar a sua brutalidade autoritária de Prick Riot – é do muito mais nefasto segundo tipo.
Em 1905, Leon Trotsky caracterizou a Rússia czarista como “uma perversa combinação do látego asiático com a bolsa de valores europeia.” Será que esta designação não se aplica mais e mais também à Rússia de hoje? Não anuncia a subida da nova fase do capitalismo, capitalismo com valores asiáticos (que, evidentemente, nada tem a ver com a Ásia e tudo a ver com as tendências antidemocráticas no capitalismo global de hoje). Se entendemos cinismo como o pragmatismo rude do poder que se ri secretamente dos seus próprios princípios, então as Pussy Riot são o anti-cinismo incorporado. A sua mensagem é: as ideias contam. São artistas concetuais no nobre sentido da palavra: artistas que dão corpo a uma Ideia. Foi por isso que usaram balaclavas: máscaras de desindividualização, de anonimidade libertadora. A mensagem das suas balaclavas é que não interessa qual delas foi presa – elas não são indivíduos, são uma Ideia. E é por isso que são tamanha ameaça: é fácil prender indivíduos, mas tentem prender uma Ideia!
O pânico dos que estão no poder – exibido pela sua reação ridiculamente brutal e excessiva – é assim plenamente justificada. Quanto mais brutalmente atuam, mais importante se tornará o símbolo das Pussy Riot. Para já, o resultado das medidas opressivas é que Pussy Riot se tornou um nome familiar literalmente em todo o mundo.
É um dever sagrado de todos nós evitar que as corajosas Pussy Riot não paguem na carne o preço de se terem tornado um símbolo global.
Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net
Pussy Riot - Sem medo do medo
ResponderEliminarO estado de direito não existe na Rússia, quando um tribunal decreta esta sentença ou quando um outro proíbe por 100 anos as paradas LGBT.
opiniao | 21 Agosto, 2012 - 00:07 | Por João Teixeira Lopes
Lead:
O estado de direito não existe na Rússia, quando um tribunal decreta esta sentença ou quando um outro proíbe por 100 anos as paradas LGBT.
O poder instalado no Kremlin aproxima-se cada vez mais de um fascismo. Para além da corrupção e do nepotismo, a concentração e a centralização do poder assumem proporções próprias das ditaduras. Eu sei que a oposição não é brilhante: entre um partido comunista enfraquecido, esclerosado e descaracterizado e os liberais cleptocratas herdeiros de Ieltsin, existe ainda pouca afirmação de uma sociedade civil independente dos poderes económicos e capaz de rejeitar tanto a via selvática de um capitalismo de abutres que despedaçam os bens públicos ou de um autoritarismo de estado sem ideologia que não seja a da sua própria perpetuação.
Pouco sei sobre os antecedentes e o enquadramento cultural e ideológico do colectivo punk e feminista Pussy Riot, mas confesso a minha admiração e respeito por estas mulheres corajosas, condenadas a dois anos de cadeia por hooliganismo e “incitação à raiva religiosa” e presas num estabelecimento onde são humilhadas e mal-tratadas, trazendo ao de cima a cultura goulag de encarceramento. Convém lembrar, aliás, que mais de 47 mil mulheres russas estão presas nesta espécie de campos.
O estado de direito não existe na Rússia, quando um tribunal decreta esta sentença ou quando um outro proíbe por 100 anos as paradas LGBT. Afrontar o todo-poderoso Putin ou a sacrossanta igreja ortodoxa, aliados num caldo de nacionalismo bafiento, é considerado um crime contra a sociedade, mas a repressão às liberdades é feita pelos próprios tribunais!
Mulheres corajosas e solidárias, firmes perante a sentença e perante poderes que, na verdade, demonstram apenas os seus pés de barro, as Pussy Riot mostraram-nos que já não têm medo do medo.
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João Teixeira Lopes