"Un cañón en el culo", o texto do escritor Juan José Millás publicado no El País a 14 de Agosto, rapidamente circulou pelas redes sociais e incendiou a opinião pública espanhola.
Frontal e lúcida, como exigem os tempos que correm, a violenta crítica de Juan José Millás à barbárie capitalista que nos domina merece ser lida na íntegra:
O cano de uma pistola pelo cu
Se percebemos bem - e não é fácil, porque somos um bocado tontos -, a economia financeira é a economia real do senhor feudal sobre o servo, do amo sobre o escravo, da metrópole sobre a colónia, do capitalista manchesteriano sobre o trabalhador explorado. A economia financeira é o inimigo da classe da economia real, com a qual brinca como um porco ocidental com corpo de criança num bordel asiático.
Esse porco filho da puta pode, por exemplo, fazer com que a tua produção de trigo se valorize ou desvalorize dois anos antes de sequer ser semeada. Na verdade, pode comprar-te, sem que tu saibas da operação, uma colheita inexistente e vendê-la a um terceiro, que a venderá a um quarto e este a um quinto, e pode conseguir, de acordo com os seus interesses, que durante esse processo delirante o preço desse trigo quimérico dispare ou se afunde sem que tu ganhes mais caso suba, apesar de te deixar na merda se descer.
Se o preço baixar demasiado, talvez não te compense semear, mas ficarás endividado sem ter o que comer ou beber para o resto da tua vida e podes até ser preso ou condenado à forca por isso, dependendo da região geográfica em que estejas - e não há nenhuma segura. É disso que trata a economia financeira.
Para exemplificar, estamos a falar da colheita de um indivíduo, mas o que o porco filho da puta compra geralmente é um país inteiro e ao preço da chuva, um país com todos os cidadãos dentro, digamos que com gente real que se levanta realmente às seis da manhã e se deita à meia-noite. Um país que, da perspetiva do terrorista financeiro, não é mais do que um jogo de tabuleiro no qual um conjunto de bonecos Playmobil andam de um lado para o outro como se movem os peões no Jogo da Glória.
A primeira operação do terrorista financeiro sobre a sua vítima é a do terrorista convencional: o tiro na nuca. Ou seja, retira-lhe todo o caráter de pessoa, coisifica-a. Uma vez convertida em coisa, pouco importa se tem filhos ou pais, se acordou com febre, se está a divorciar-se ou se não dormiu porque está a preparar-se para uma competição. Nada disso conta para a economia financeira ou para o terrorista económico que acaba de pôr o dedo sobre o mapa, sobre um país - este, por acaso -, e diz "compro" ou "vendo" com a impunidade com que se joga Monopólio e se compra ou vende propriedades imobiliárias a fingir.
Quando o terrorista financeiro compra ou vende, converte em irreal o trabalho genuíno dos milhares ou milhões de pessoas que antes de irem trabalhar deixaram na creche pública - onde estas ainda existem - os filhos, também eles produto de consumo desse exército de cabrões protegidos pelos governos de meio mundo mas sobreprotegidos, desde logo, por essa coisa a que chamamos Europa ou União Europeia ou, mais simplesmente, Alemanha, para cujos cofres estão a ser desviados neste preciso momento, enquanto lê estas linhas, milhares de milhões de euros que estavam nos nossos cofres.
E não são desviados num movimento racional, justo ou legítimo, são-no num movimento especulativo promovido por Merkel com a cumplicidade de todos os governos da chamada zona euro.
E não são desviados num movimento racional, justo ou legítimo, são-no num movimento especulativo promovido por Merkel com a cumplicidade de todos os governos da chamada zona euro.
Tu e eu, com a nossa febre, os nossos filhos sem creche ou sem trabalho, o nosso pai doente e sem ajudas, com os nossos sofrimentos morais ou as nossas alegrias sentimentais, tu e eu já fomos coisificados por Draghi, por Lagarde, por Merkel, já não temos as qualidades humanas que nos tornam dignos da empatia dos nossos semelhantes. Somos simples mercadoria que pode ser expulsa do lar de idosos, do hospital, da escola pública, tornámo-nos algo desprezível, como esse pobre tipo a quem o terrorista, por antonomásia, está prestes a dar um tiro na nuca em nome de Deus ou da pátria.
A ti e a mim, estão a pôr nos carris do comboio uma bomba diária chamada prémio de risco, por exemplo, ou juros a sete anos, em nome da economia financeira. Avançamos com ruturas diárias, massacres diários, e há autores materiais desses atentados e responsáveis intelectuais dessas ações terroristas que passam impunes entre outras razões porque os terroristas vão a eleições e até ganham, e porque há atrás deles importantes grupos mediáticos que legitimam os movimentos especulativos de que somos vítimas.
A economia financeira, se começamos a perceber, significa que quem te comprou aquela colheita inexistente era um cabrão com os documentos certos. Terias tu liberdade para não vender? De forma alguma. Tê-la-ia comprado ao teu vizinho ou ao vizinho deste. A atividade principal da economia financeira consiste em alterar o preço das coisas, crime proibido quando acontece em pequena escala, mas encorajado pelas autoridades quando os valores são tamanhos que transbordam dos gráficos.
Aqui se modifica o preço das nossas vidas todos os dias sem que ninguém resolva o problema, ou mais, enviando as autoridades para cima de quem tenta fazê-lo. E, por Deus, as autoridades empenham-se a fundo para proteger esse filho da puta que te vendeu, recorrendo a um esquema legalmente permitido, um produto financeiro, ou seja, um objeto irreal no qual tu investiste, na melhor das hipóteses, toda a poupança real da tua vida. Vendeu fumaça, o grande porco, apoiado pelas leis do Estado que são as leis da economia financeira, já que estão ao seu serviço.
Na economia real, para que uma alface nasça, há que semeá-la e cuidar dela e dar-lhe o tempo necessário para se desenvolver. Depois, há que a colher, claro, e embalar e distribuir e faturar a 30, 60 ou 90 dias. Uma quantidade imensa de tempo e de energia para obter uns cêntimos que terás de dividir com o Estado, através dos impostos, para pagar os serviços comuns que agora nos são retirados porque a economia financeira tropeçou e há que tirá-la do buraco. A economia financeira não se contenta com a mais-valia do capitalismo clássico, precisa também do nosso sangue e está nele, por isso brinca com a nossa saúde pública e com a nossa educação e com a nossa justiça da mesma forma que um terrorista doentio, passo a redundância, brinca enfiando o cano da sua pistola no rabo do sequestrado.
Há já quatro anos que nos metem esse cano pelo rabo. E com a cumplicidade dos nossos.
(tradução disponibilizada pelo Dinheiro Vivo)
visão do mundo Depois do artigo que incendiou Espanha, a entrevista: "Tornámo-nos uma colónia da Alemanha"
ResponderEliminarO autor, Juan José Millás
António Acedo
25/08/2012 | 00:00 | Dinheiro Vivo Nasceu em Valência, a 31 de janeiro de 1946, mas é em Madrid que vive desde os seis anos, onde equilibra a carreira de escritor com a de professor na Escuela de Letras de Madrid e inúmeras colaborações em jornais. É casado, tem dois filhos, é socialista. Licenciado em Filosofia e Letras, celebrizou-se com obras como El Desorden de Tu Nombre, La Soledad Era Esto ou a novela autobiográfica El Mundo, e até criou um estilo literário: os articuentos, um híbrido entre contos e artigos, escritos no telemóvel. Há uma semana publicou no El País o artigo ao lado, que incendiou Espanha. Ao Dinheiro Vivo, explica como vê o mundo.
Leia aqui a opinião de Millás que incendiou Espanha
Vivemos uma crise sem paralelo e sem fim à vista. Como vê o futuro de Espanha e de Portugal?
Vejo-o mal, já que nos tornámos uma colónia da Alemanha e vivemos sob um governo composto por grandes especuladores. Não é a política que influencia a economia mas a economia que determina a política. Como dizem os jovens do 15M [movimento de cidadãos também conhecido como dos indignados, nascido a 15 de março de 2011], "chamam-lhe democracia, mas não é".
Quando esta crise começou, Espanha (como Portugal) era liderada por um governo socialista. Como é que isto aconteceu?
Historicamente, a social-democracia atraiçoa-nos sempre. Está na sua natureza. Depositei muitas esperanças no Governo de Zapatero, mas no fim, de um dia para o outro, ele curvou-se ao poder financeiro. E quando convocou eleições, fez passar uma mensagem subliminar aos eleitores de que só a direita estava contente com o que se passava.
Acredita que os atuais governos, de direita, estão a tomar as piores medidas possíveis? Um governo de esquerda faria melhor?
Os governos de direita estão a fazer aquilo que sempre quiseram fazer, legitimando as decisões com a ideia de que tudo lhes é imposto de fora. "Não tenho liberdade de escolha", disse há dias [o primeiro-ministro espanhol] Mariano Rajoy, perante o Parlamento. E ninguém lhe pediu imediatamente que se demitisse, porque a esquerda ficou muda.
É sensato que países como Espanha ou Portugal se mantenham no euro? Não ficaríamos melhor com pesetas e escudos do que com a moeda única?
Não sei, é uma pergunta demasiado técnica. Parece é que nunca devíamos ter entrado na moeda única.
O euro e as normas europeias são demasiado fortes e rígidos?
Não é essa a questão. A ideia que tínhamos de Europa não era a de um IV Reich. Philip K. Dick escreveu uma novela de ficção científica na qual os alemães tinham ganho a II Guerra Mundial e nos faziam acreditar que a vitória tinha sido nossa. O mundo atual seria o resultado dessa vitória oculta.
Quem, entre os líderes europeus, se tem portado pior nesta crise?
Merkel e Draghi.
O que poderia Merkel ter feito de forma diferente - e os alemães aceitá-lo-iam?
A chanceler alemã devia colaborar na construção de uma Alemanha europeia e não na edificação de uma Europa alemã. Mas, como quase todos os políticos, atua apenas de acordo com critérios quantitativos e de curto prazo.
Acredita que um resgate total a Espanha é inevitável? E os espanhóis estão prontos para aceitá-lo?
Creio que é inevitável. E nós aceitaremos. Não temos capacidade de rebelião, pelo menos que parta dos partidos políticos convencionais.
O seu artigo foi o mais lido de sempre do El País e invadiu as redes sociais. Tornou-se viral mesmo fora de Espanha. Qual a razão do êxito?
Porque aceitei escrever aquilo que muitos pensam.